Um dia serei mais do que uma pedra da calçada

Um dia serei mais do que uma pedra da calçada. Um dia, daqui a muito tempo.
Por hoje, sou pedra. Por hoje, sou pedra baça, pisada e repisada num dia-a-dia movimentado nas ruas de Lisboa. Por hoje, sou um simples nada, em que ninguém se digna a reparar. Ninguém mesmo se digna a fazer uma pausa na sua caminhada ofegante para olhar para mim, e ver que sou especial, sou diferente das outras pedras, em tantos pequenos detalhes.
É assim que se sente uma pedra. Ou sentiria, talvez, se tivesse sentimentos. Mesmo quando acompanhada, está sozinha. Mesmo quando está seca ninguém a rega carinhosamente, como se regam as flores. Mesmo quando está triste, não chora. Mesmo quando grita, ninguém parece ouvi-la.
Um dia serei mais do que uma pedra (branca) da calçada.
Mas por hoje, continuo presa ao chão com cimento, pisada e repisada. E as pessoas sujam o chão, quando o pisam. E desgastam as pedras, e tiram-lhe o brilho. As pessoas sujam o chão, quando o pisam.
Um dia, quero ser pessoa. Pisar em vez de ser pisada. Quero soltar-me deste cimento agoniante, que me mata a cada dia. E me faz ficar triste. Mas não choro, porque pedras não choram; nem quando estão tristes.
Um dia talvez me torne pessoa. Quando estiver gasta, deformada, baça. Quando já não restar nem um dos detalhes que me torna especial. Quando estiver tão suja que já não sirvo para ser pedra. Um dia, daqui a muito tempo.
Ou talvez pouco, porque também os pneus dos carros já começam a pisar-me com o seu barulho. E também as sombras começam a espreitar, à noite, e pisam com mais força.
Por hoje sou pedra. Só por hoje.
Amanhã de manhã, quando a cidade acordar, visto-me e calço-me em silêncio. Penteio-me. (Correm lágrimas pelos meus olhos). Liberto-me do cimento gelado e caminho por cima das outras pedras. Devagar, para reparar em cada uma delas. E cada uma surge como uma pedra tão especial, tão finamente detalhada. Tão humana.
Um dia serei mais do que uma pedra da calçada.